No presente texto, analisaremos dois questionamentos bem polêmicos: a) É constitucional a exigência de Teste de Aptidão Física (TAF) nos casos envolvendo transexuais; b) A aplicação do TAF para casos de transgêneros deverá ser em conformidade com sua identidade de gênero ou bilógica?
Quanto ao primeiro questionamento, é relevante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já se posicionou a respeito da aplicação dos Testes de Aptidão Física em concursos públicos, desde que haja previsão legal e pertinência com função do cargo a ser exercida.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça tem se posicionado no sentido de que é desarrazoado a exigência de teste de aptidão física em concursos voltados a preencher cargos de escrivão, papiloscopista, perito criminal e perito médico-legista, porquanto a atuação destes, embora física, não se faz no campo da força bruta, mas a partir de técnica específica, conforme exposto no posicionamento jurisprudencial, in verbis:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. POLÍCIA TÉCNICO-CIENTÍFICA. AUXILIAR DE AUTÓPSIA. EXAME DE APTIDÃO FÍSICA. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IMPOSSIBILIDADE. 1. Cinge-se a controvérsia à legalidade da exigência de aprovação em teste de aptidão física, em face das atividades inerentes ao cargo de Auxiliar de Autópsia, para o qual o recorrente concorreu. 2. As disposições do edital inserem-se no âmbito do poder discricionário da Administração, o qual não está, porém, isento de apreciação pelo Poder Judiciário, se comprovada ilegalidade ou inconstitucionalidade nos juízos de oportunidade e conveniência, como na espécie, em que não há previsão legal para a exigência do teste de aptidão física. 3. O exame de aptidão física em concurso público apenas poderá ser exigido se for amparado em lei, por força do que estabelece o II do art. 37 da Constituição Federal de 1988. Precedentes. 4. Agravo regimental não provido. (STJ – AgRg no RMS: 34676 GO 2011/0124462-8, Relator: Ministro CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 09/04/2013, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/04/2013)
Portanto, ao se aplicar o Teste de Aptidão Física para os casos envolvendo transexuais, não há que se falar em inconstitucionalidade de tal exigência para cargos públicos não burocráticos que exigem força física e são submetidos homens e mulheres aos testes independente do gênero, sob pena do Administrador Público exercer tratamento diferenciado, lesando o princípio constitucional da isonomia.
Logo, se o Teste de Aptidão Física possui previsão legal e o cargo a ser preenchido exige rigor físico para sua atuação, é legítima e constitucional a exigência de testes físicos como etapa do concurso público para os transexuais, conforme prevê a própria Constituição Federal de 1988, ipsis literis:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;
Ultrapassadas as questões atinentes à constitucionalidade da exigência do Teste de Aptidão Física para transexuais, resta esclarecer se tal aplicação do teste aos transexuais deverá se pautar em conformidade com sua identidade de gênero ou biológica e como lidar com as situações de transexuais que estão submetidos à terapia hormonal e/ou alterações físicas.
A priori, antes de expor a forma constitucional a ser aplicada dos testes físicos aos transexuais nos certames, é relevante ressaltar a definição de concurso público explicitada por Marçal Justen Filho:
O concurso público é um procedimento conduzido por autoridade específica, especializada e imparcial, subordinado a um ato administrativo prévio, norteado pelos princípios da objetividade, da isonomia, da impessoalidade, da legalidade, da publicidade e do controle público, destinado a selecionar os indivíduos mais capacitados para serem providos em cargos públicos de provimento efetivo ou em emprego público. (JUSTEN FILHO, Marçal, Curso de Direito Administrativo – 12 ed. ver. Atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.)
Sabe-se que os testes físicos devem ser aplicados de forma impessoal e isonômica, inclusive, os próprios Tribunais Superiores já pacificaram seus entendimentos que é possível a relativização da isonomia no que tange a aplicação de exigência diversa no quesito “intensidade” do exercício físico a ser realizado com distinção em relação ao gênero masculino e feminino.
Por exemplo, em muitos concursos de carreiras policiais para homens exige-se na corrida que o candidato percorra no mínimo 2.400m (dois mil e quatrocentos metros) e para mulheres o mínimo de 2.000m (dois mil metros), e tal diferenciação tem respaldo constitucional, principalmente, pela ótica da isonomia material.
Portanto, o que se precisa verificar é se o transexual será submetido ao teste relativo ao gênero masculino ou feminino? Será aplicado para casos de homem ou mulher? O examinador responsável pelo concurso público deve se pautar pela identidade de gênero ou biológica?
Conforme já abordado, o concurso público deve se pautar na lei, na impessoalidade, na isonomia e nos princípios constitucionais, por conseguinte, o que deve prevalecer é a natureza jurídica envolvida e não as particularidades e peculiaridades do caso, portanto, se o candidato teve o seu direito reconhecido pela via judicial ou via cartório sendo considerado oficialmente homem ou mulher,o que prevalece é a última identidade psicossocial em detrimento à identidade biológica.
Tal posicionamento supracitado coaduna com o recente entendimento do Supremo Tribunal Federal em Repercussão Geral, na ADI 4.275 e RE 670.422 votado em 01/03/2018, por unanimidade, reconheceu que pessoas trans podem alterar o nome e o sexo no registro civil sem que se submetam a cirurgia. Em suma, se a pessoa tem o seu direito reconhecido em registro civil, mesmo que biologicamente ainda não houve alteração hormonal e terapêutico, o que deverá ser levado em consideração é a identidade oficial e juridicamente reconhecida.
No ano passado, em 2017, o Superior Tribunal de Justiça também já havia reconhecido esse direito. A 4ª Turma concluiu que a identidade psicossocial prevalece em relação à identidade biológica, não sendo a intervenção médica nos órgãos sexuais (transgenitalização) um requisito para a alteração de gênero em documentos públicos.
Ademais, convêm acrescentar que o Tribunal Superior Eleitoral decidiu no dia 01/03/2018, que as cotas de candidatos dos partidos políticos são de gênero, e não de sexo biológico. Isso quer dizer que transgêneros devem ser considerados de acordo com os gêneros com que se identificam.
Pelo exposto, o nosso posicionamento se pauta nos recentes entendimentos dos Tribunais Superiores, no sentido de ser constitucional a aplicação do Teste de Aptidão Física para transexuais (havendo previsão legal e pertinência com o cargo a ser pleiteado), e na execução dos exercícios, os candidatos serão submetidos em conformidade com sua identidade oficialmente reconhecida pela via judicial ou pela mudança de sexo por meio de registro oficial em cartórios, nos termos da Repercussão Geral reconhecida no Supremo Tribunal Federal na ADI 4.275 e RE 670.422, independente de tratamento hormonal e alterações biológicas, portanto, o que for válido juridicamente é o que será aplicado nos testes realizados pelos candidatos nos concurso públicos.
*Agnaldo Bastos, advogado especialista em direito público, atuante em causas envolvendo concursos públicos, agentes públicos e licitações.
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